quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Feitiço do Tempo e a Árvore de Ponta-Cabeça

            Faz muito tempo, a Terra não era como é hoje. Por muito tempo ela foi um lugar muito diferente, que abrigava vidas muito diferentes das nossas. O Grande Espírito, no seio do qual vive nosso planeta e todas as coisas vivas e mortas, tinha outras cores, e sua natureza cobria tudo. Uma natureza muito diferente da que conhecemos. Isso porque muitos dos seres daquela época não existem mais, ou se esconderam muito bem para fugir das mudanças dessas dezenas de milhares de anos. Além de diversos tipos de animais e plantas, que seriam familiares aos que conhecemos hoje, existiam também diversas criaturas mágicas, como unicórnios, grifos e dragões, e uma infinidade de “espíritos”, criaturas sutis que viviam sem corpo físico que se pudesse tocar, mas que se deixavam ver e interagiam com todas as outras com grande vivacidade.
            Claro que não era um mundo perfeito. Era, apenas, um mundo mágico - mais mágico do que hoje. Claro que tinha seus problemas. Todos estes seres eventualmente se desentendiam, e alguns tinham de fugir para não serem devorados por outros. A magia deixava o mundo mais interessante, mais vivo, ainda que não resolvesse todos os problemas.
            Ah! Os problemas! Sim, existiam, mas não como hoje. Aliás, essa é a história de como alguns de nossos problemas começaram – e é a história do maior deles, o problema derradeiro que um dia vai acabar com a paz que ainda nos resta e com todas as nossas vidas. Mas esperamos que esse dia nunca chegue, e por isso recontamos esta história.
           

            E, apesar de todas as criaturas mágicas, espíritos, e espécies de outrora que poderiam ser o centro da questão, a criatura que causou tudo isso é, surpresa, uma árvore. Sim, uma árvore.
            Mas não se apressem. As árvores são seres importantes. São as criaturas mais poderosas deste mundo, e sempre foram responsáveis por segurar o céu no lugar – de seus galhos e folhas sobem forças invisíveis que permitem a vida. E toda árvore é dotada de uma grande magia, e uma grande capacidade de gerar vida. Os mais apressados de hoje pensam que elas não fazem nada, só são coisas lá paradas, mas elas guardam um mundo inteiro dentro de si. Protegem a vida de milhões de pequenos seres que vivem em suas folhas e galhos, troncos e raízes. Dão alimento em abundância para todos os seres que têm fome. Dão remédio a todos que agem mal e ficaram doentes. Toleram o sol ardente para nos dar a sombra refrescante de suas copas. As árvores são a essência de toda a vida. Enfim, podem não mostrar isso, mas são os seres mais poderosos de todo o universo.
            Contudo, as árvores também têm seus momentos de fragilidade. Quando ainda são sementes, precisam achar solo bom onde germinar. Quando são pequenas, precisam ser respeitadas para não morrerem pisoteadas. Quando estão crescendo, precisam de carinho e atenção como qualquer outro ser vivo. Até que se tornem fortes o suficiente para serem tão bondosas, não são muito menos frágeis que qualquer um de nós.
           
            Pois bem. Sucedeu que um belo dia uma certa árvore produziu uma semente um pouco diferente. Ou talvez tenha sido outro desejo do grande espírito em criar um ser diferente, em experimentar criando uma árvore diferente. Ninguém sabe por que essa semente surgiu, para que o Grande Espírito a criou, e esta talvez seja a pergunta mais importante de todo o universo. Mas aconteceu.
            Esta semente germinou em uma pequena colina, junto de outras árvores de sua família. Porém, desde o começo as outras árvores perceberam que esta era uma semente diferente. Já uma muda com alguns centímetros, ela ainda não emitia suas primeiras folhas. Ao invés disso, seus frágeis galinhos cresciam cinzentos e grossos. As outras árvores acharam que esta nova árvore era feia. Conversando entre si, pelas suas raízes, não falavam desrespeitosamente da nova árvore, mas era visível que não se sentiam bem com ela. “Porque ela não solta folhas?” perguntavam-se. De certo modo, é possível se entender a surpresa.
            A pequena árvore feia não entendia muito bem o que estava acontecendo. Estava só sendo o que achava que tinha de ser, e tentava se enturmar. Porém cada vez se sentia menos à vontade com as outras árvores, que aos poucos foram se afastando dela (sim, árvores podem se mover, embora muito lentamente). Também os animais do bosque não vinham lhe visitar, alguns até passaram a passar longe dela, assustados com seu tronco cinzento, rústico e sem folhas brotando do chão. Sem as folhas, a pequena árvore não tinha como produzir algo que atraísse a vida para morar nela, e assim ela foi se sentindo mais solitária.
            E ela continuou crescendo. Anos mais tarde, era uma grande árvore, com troncos bastante ramificados desde a base, retorcidos, grossos, e cinzentos. Embora parecesse morta e sem viva, estava viva, e se sentia bastante solitária. Todo o bosque da sua colina havia ido embora, e nem mesmo pequenas plantas e gramas existiam mais por ali, pois os animais que levavam suas sementes e pólens não iam mais para lá. Assim ela passou um tempo, vivendo solitária e rancorosa, e nunca produziu sequer uma folha, flor, ou fruto.
            Até que um dia, fatídico e triste dis, quando completou seu primeiro século de existência, seu ressentimento finalmente se transformou em ódio. E ela decidiu se rebelar contra a situação do mundo em que vivia. Decidiu não mais colaborar com o suporte do céu, não mais crescer seus galhos na tentativa de ser boa para alguém. Sua alma se transformou em ódio, e ela só queria destruir todo ser vivo que encontrasse. Decidiu não mais ser, enfim, uma árvore, e levantou-se.
            Digo, levantou-se, mas não pense que ela simplesmente retirou suas raízes do chão e saiu marchando, mais rápido do que poderia se andasse adequadamente como qualquer outra árvore. Toda árvore vive de ponta-cabeça. Ali, onde está o começo de suas raízes, mergulhadas na terra e abaixo do tronco, ficam as cabeças das árvores, acostumadas a viver junto de nossos pés.
            Esta árvore, cansada de se sentir abaixo dos outros, inverteu-se. Colocou suas raízes voltadas para o céu, e com seus troncos fortes e compridos no chão se pôs a marchar, feito um pingüim ou um humano (embora de certo modo parecesse um aranha também). Na base de suas raízes, dois olhos vermelhos brilhavam de ódio. Naturalmente ela cambalearia e não andaria muito bem, mas com toda sua raiva e todo seu poder mágico ela era capaz até de voar quando quisesse, e assim manter um movimento assustador. Agora ela queria fazer o que sempre fizera, sem desejar: queria causar medo e espalhar o terror. E queria destruir.

            E, no início, não houve força no universo capaz de pará-la. Com sua magia, aniquilou os dragões, que foram os primeiros a se juntar na tentativa de defender a vida do planeta desta criatura maligna. Destruiu os espíritos que ficaram em seu caminho, matou os animais, queimou as plantas. Exércitos de seres se organizavam para combatê-la, mas nenhum era páreo para seu poder. E aqueles que eram poderosos magicamente, como alguns espíritos e algumas criaturas, muito dotados magicamente, a árvore derrotou utilizando-se de estratégias sórdidas e enganosas. Afinal, ela era tão poderosa que podia se disfarçar, e assim se infiltrar em meio a seus inimigos e inspirar neles a desunião e a confusão. Ela podia dominar mentes e criar ilusões, e poucos conseguiam encará-la sem perder sua sanidade.
            E as outras árvores, que fizeram? Nada. Não podiam fazer nada, apesar de possuírem todo o poder do mundo, aquele poder só podia ser usado para a sustentação do Céu e da Vida. E sabiam que, se ousassem sair do chão para combater a árvore maligna em pé de igualdade, é bem provável que logo se tornariam como ela. Não podiam fazer nada, porque sabiam que o poder que possuíam tinha uma finalidade e uma força que ia além das suas próprias vidas, e mesmo além da própria vida de todos ao seu redor. Com ele só podiam fazer o que sempre fizeram, e não combater ou se envolver em problemas que surgissem ou o que achassem que fosse correto em um momento ou outro. Tinham de se manter firmes, e só. E por isso deixaram o restante da Vida entregue às próprias forças - e estas estavam em plena desvantagem.

            Até que um dia, alguns humanos, refugiados em um dos últimos lugares ainda não arrasados pela árvore, tiveram uma idéia. Eles tinham visto, através da clarividência, a árvore resistir à todo tipo de ataque. Tinham visto ela se regenerar após fogo e explosões. Ela se esquentar após congelarem seus galhos com invocações de nevascas. Ela se reconstruir após ser destruída por chuvas de lâminas e rochas. Ela retornar voando após ser lançada ao Sol. Ela tinha em si um poder divino, e isso era muito a se enfrentar. Mas havia uma saída possível. Ela um dia foi frágil, como toda árvore, e pela clarividência os humanos puderam conhecer seu passado. Então eles inventaram o feitiço do tempo.
            Os humanos, até então, não eram nada de especial. Eram uns animais inteligentes e linguarudos, que até a grande guerra da árvore começar gostavam de passar a maior parte do dia se penteando, nadando nos rios, fazendo brincadeiras ou fazendo amor. Podiam também fazer algumas mágicas, e alguns tinham alguma clarividência ou outros dons, mas nada demais. Eram, entretanto, já acostumados a ter de viver sob o julgo do tempo, do mesmo modo que as árvores e alguns outros poucos seres, com uma memória que lhes trazia tanto a angústia do passado feliz quanto a sabedoria do que é melhor fazer. Portanto, de tempo eles entendiam, e isso era o começo. Era o que precisavam.
             Claro que, individualmente, nenhum deles tinha a força mágica suficiente para a magia que imaginaram, mas sabiam que podiam juntar suas forças, e num grande ritual com muitos humanos, podiam realizar seu intento.
            Dito e feito. Juntaram-se muitos irmãos. E criaram juntos um elaborado ritual, com danças, cânticos e palavras mágicas:

            “Ó Grande Espírito, houve nossa roga!
            Porque há dentre seus filhos,
            uma criatura que não sabe viver, e não sabe porque vive.

            Ó Grande Espírito, houve nossa roga!
            Envia uma grande chuva para acalmar aquela alma.
            Não sabemos porque a criou, mas sabemos que merece a paz também.
            Envia uma grande chuva que sossegue aquela mente.

            Ó Grande Espírito, deixa-nos inverter a direção de seu tempo!
            Deixa aquela alma esquecer de tudo que lhe houve!
            Deixa aquele ser voltar no tempo, e ser de novo alguém em paz!
            Deixa este mundo desfrutar um pouco mais de vida!
            E faz voltar no tempo a existência daquela árvore.

            Ó Grande Espírito, venha com tua chuva!
            Deixa aquela árvore ter a mente em paz.
            Deixa aquela árvore voltar a ser uma muda.
            Deixa aquela muda voltar a ser um broto.
            Deixa aquele broto voltar a ser semente.
            Para o nosso tempo voltar  fluir, um pouco mais, em paz.”

Quando a grande árvore de ponta-cabeça se aproximou deles, o ritual estava já se concluindo. Ela pode ver apenas rapidamente aqueles que a derrotavam, quando um deles gritava a última palavra mágica. Então o feitiço lhe surtiu efeito. Começou, com uma chuva.
            A chuva tomou de surpresa a mente da árvore, e esta se deixou acariciar pela água. Rapidamente ela se esqueceu de tudo que acontecia. Esqueceu-se do seu ódio e de todo seu ressentimento. Começou a diminuir de tamanho, e a voltar à posição normal das árvores. Enfiou suas raízes e seus olhos de volta na terra. A chuva, que lhe acalmava, também lhe transformava em emocionalmente pura e jovem novamente. Voltou a ser uma jovem árvore. Depois, voltou a ser uma pequena muda. Um broto. O broto sumiu para dentro da terra, tornando-se um pequeno embrião dentro de uma semente. A semente então pulou para fora da terra. A guerra havia acabado.
            Um dos humanos, um ancião, se adiantou, tomou a semente e a envolveu em um pequeno pedaço de pano. Então disse:
            - Irmãos! O nosso feitiço deu certo! Por hora, protegemos o universo desta ameaça. Porém nossa solução é apenas paliativa. Retornamos o tempo da vida da árvore maligna. Mas uma hora esta semente ira brotar novamente, ira crescer e ser ignorada novamente. Irá se tornar uma grande árvore feia e rancorosa de novo e de novo o mundo estará em perigo. Temos de descobrir um meio de evitar isso.
            - Vamos destruí-la agora! – alguém sugeriu.
            - Não, não podemos tentar. – outro respondeu - Se não for possível destruí-la e tivermos tentado, ela com certeza vai se sentir mal com isso pelo resto da vida, então voltará a ser o inimigo que acabamos de derrotar. Deve ter outro jeito.
            - Vamos deixá-la fora do solo e sem água! Assim ela não poderá brotar! – Outra voz sugeriu.
            - Mas e se mesmo assim ela brotar? – redargüiu o ancião, ainda segurando a semente.
           - Então poderemos nós cuidar dela dando-lhe amor e carinho, assim não se tornará rancorosa como aconteceu da primeira vez. Podemos nos tornar os guardiões da árvore.
- Mas então teremos de dar-lhe um nome. – Disse o ancião – Já que vamos ter de protegê-la, talvez por toda a eternidade. Esta semente agora se chama Mulungu, porque é a semente da árvore triste. E a partir de hoje nós somos o Povo da Árvore Mulungu, a Árvore Triste. E vamos deixá-la feliz, se realmente brotar novamente.

Assim o tempo se passou. E alguns anos mais de paz e tranqüilidade existiram no mundo. Os seres puderam se recuperar da primeira guerra da árvore, as florestas voltaram a se estender pelo planeta. Mas, infelizmente, apesar dos sinceros esforços do Povo Mulungu em evitar que a semente tocasse o solo ou tivesse água, ela ainda assim germinou, dentro do pano. Quando germinou, o povo gentilmente a plantou, e inventaram uma série de ritos e regras que pensaram ser necessários para dar a uma árvore o seu devido amor e respeito. Mesmo quando viram que ela não produzia folhas e tinha um aspecto feio e assustador, se esforçaram em criar um modo de pensar que visse beleza naquele modo de ser, o que fizeram sem dificuldade, e continuaram dando amor e carinho para a árvore.
Então, acima do solo, tudo parecia correr bem. Os outros seres não evitaram a região, porque os humanos trataram de criar uma atmosfera de amor que permitia que todos se sentissem bem, mesmo com aquela árvore estranha ali. Animais fizeram seus ninhos nos galhos da árvore Mulungu, e eles disseram para a árvore que só a chamavam de árvore triste porque ela não tinha folhas. Espíritos e criaturas mágicas gostavam de vir visitá-los, observar como iam as coisas, e saudar a árvore. Claro que todos evitavam em comentar sobre o passado daquela história, de onde a árvore veio e de como eles vieram a se tornar seu povo.
Porém, abaixo do solo, as dúvidas cresciam na mente da árvore Mulungu. Algumas coisas pareciam fora do lugar, e ela achava estranho não existirem outras árvores como ela por ali. Tantos humanos, animais e plantas, mas ninguém mais como ela. E ninguém mais ganhando tanta atenção quanto ela. De algum modo, tudo aquilo lhe fazia mal, e quando estava sozinha, dúvidas imensas surgiam em sua mente, e dois olhos vermelhos se abriam em meio à suas raízes.
No dia do seu aniversário de 100 anos, idade que tinha quando virou de ponta-cabeça pela primeira vez, alguns dos humanos mais velhos perceberam que ela tinha os galhos bem parecidos com aqueles da época da grande guerra. Parecidos demais. Resolveram, secretamente, deixar preparados os instrumentos, danças e cantos para o feitiço do tempo, caso este fosse necessário novamente. Infelizmente, a árvore percebeu que um movimento diferente acontecia, e exigiu respostas. Vendo que não queriam lhe explicar o que estava acontecendo, foi se enfurecendo cada vez mais. Queria agora saber tudo. Porque era venerada por eles? Porque era feia? De onde todos eles tinham vindo?
Então, com a raiva, o feitiço se quebrou. Ela se lembrou de tudo. Com mais de 100 anos, o feitiço do tempo não podia ir além sem se tornar enfraquecido. A árvore assim que se lembrou de tudo ficou furiosa. Os humanos começaram a fazer o elaborado ritual, enquanto ela se levantava novamente do solo e se invertia, pronta para começar uma nova onda de destruição. Todos se desesperaram, ao ver os olhos vermelhos do antigo demônio surgindo da terra. Outras criaturas acudiram em socorro, ouvindo os gritos do povo da árvore. Os mais diversos animais e criaturas mágicas vieram se sacrificar na luta, dispostos a ganhar um pouco mais de tempo para que o ritual fosse feito com sucesso novamente. Mas ela estava muito próxima dessa vez, e o tempo era curto.
            Foi uma batalha sangrenta. No fim, o feitiço foi concluído novamente, felizmente. Porém, quando a árvore viu que estava perdendo a batalha, e reconheceu as nuvens da Chuva do Tempo se formando sobre ela, ela fez seu último movimento. Pela primeira vez em toda sua existência, ela subitamente lançou sementes. Através de sua magia poderosa, lançou suas sementes diretamente no coração de todos por perto. Queria especialmente se vingar dos humanos, aquelas criaturas falsas e ardilosas que tanto lhe enganaram. Assim plantou, dentro do coração de cada um, fundo de modo a não poder ser retirada jamais, uma semente sua. E rogou-lhes sua maldição:

“Humanos insolentes que pensam ser sábios,
dentro de cada um de vocês agora mora,
um monstro tão maligno quanto este que agora derrotam.

Em seus corações ele vai germinar
E as suas almas ele vai consumir
Muito poder ele vai lhes dar, e assim vai os seduzir
a fazer tanto mal quanto o que agora evitam.

Terão todo o poder divino de uma árvore adulta,
porém como eu só farão o mal com ele.
E com suas almas corrompidas,
vão poder se deleitar e se deliciar com isso,
com toda a dor e destruição que causarem.

E, através do sêmen que cada pai corrompido não poderá segurar,
cada um de seus rebentos herdará esta maldição também.
Assim cada um de vocês, cada um de seus filhos e filhas,
quando minhas sementes dominarem suas almas,
serão todos meus escravos,
E permitirão que a esta terra eu retorne para os destruir.”
Então a chuva começou. Enquanto a árvore maligna voltava uma segunda vez a se tornar semente pela terceira vez, todos emudeceram e se curvaram, sentindo uma forte dor em seus peitos. Não só os humanos receberam as sementes malignas, mas não se sabia ainda que conseqüências sofreriam as poucas outras criaturas e espíritos que as receberam. Todos estavam muito preocupados. Então os sobreviventes se juntaram ao lado da pequena semente Mulungu, para discutir seu destino compartilhado.
Mas o silêncio durou por um bom tempo. Desta vez, ninguém se adiantou para tomar a semente caída em mãos e guardá-la em um pano. Ninguém sabia o que dizer. Então um espírito luminoso que participou do combate, um ser de pura luz e de grande sabedoria, que talvez tenha existido desde sempre, tomou a palavra:
- Humanos, vocês precisam ser fortes agora, mais fortes do que nunca. A partir de hoje são uma nova raça, e uma raça que terá de viver com o inimigo dentro de si, dia após dia, noite após noite, até o fim dos tempos. Possuem agora duas grandes responsabilidades que terão de carregar até o fim do Grande Espírito. Terão de regularmente refazer o vosso feitiço do tempo, que só vocês podem fazer porque só vocês, quando estão juntos, compreendem tão bem o tempo - principalmente agora que guardam estas sementes no peito. Terão de fazê-lo sempre, para evitar que a pequena semente Mulungu original sequer brote. E, em adição a isso, terão de fazer consigo mesmos novos rituais para impedir que as sementes que receberam brotem dentro de si. Terão de se vigiar e se policiar, e precisarão desenvolver disciplina e hábitos regulares para impedir que a maldade tome seus corações. Inclusive pode ser que muitas coisas que costumam fazer ou consumir se lhes tornem proibidas, por talvez levarem estas sementes a brotar. Terão de desenvolver conhecimento sobre isso como nunca antes foi feito na história do mundo, e terão de proteger bem esse conhecimento. O futuro de todos depende disso.
Como ninguém lhe respondeu, recebendo apenas com olhares profundos, o espírito luminoso continuou.
- Mas nós, espíritos sutis, não os deixaremos carregar estes fardos sozinhos. Vamos ajudá-los, assim como as demais criaturas vivas. Neste momento, concedo uma benção sobre todos vocês para ajudá-los: Agora poderão se tornar espíritos depois da morte, e assim auxiliarem seus filhos e os filhos de seus filhos a cumprirem suas responsabilidades. E todos nós espíritos ajudaremos no que pudermos para lhes trazer conhecimentos e idéias, e para lhes levar suas notícias importantes aos parentes distantes. Ajudaremos também nas decisões difíceis que terão de tomar, nos rumos que terão de seguir. E as demais criaturas ajudarão também no que precisarem, fornecendo companhia, apoio, transporte, vestimenta e alimento, sempre que for importante e necessário. Mas vocês devem manter suas sementes do mal não-germinadas, até que alguém descubra com o Grande Espírito o grande porquê. O porquê que a árvore Mulungu veio a existir e a se tornar má. E quando soubermos o porquê, talvez possamos também destruir as sementes malignas em seus corações. Esta é a terceira grande responsabilidade que surgiu hoje, e esta responsabilidade é de todos nós, não só dos irmãos humanos.
Os outros seres presentes – espíritos e animais – concordaram com a fala do espírito luminoso. Juntos, decidiram erigir um monumento para ajudar a lembrar a todos seus descendentes do que aconteceu, e do que tinham de fazer. E no monumento escreveram a grande Profecia do Tempo, que é tanto uma profecia quanto um desejo:
“Um dia, o mundo estará em risco novamente.
Neste dia, o mundo terá dois grandes rumos possíveis:
Ou a grande árvore do mal voltará a se rebelar, reiniciando sua destruição,
Ou descobriremos, juntos, o grande porquê de sua existência,
E com esta resposta, desejamos, teremos um modo de evitar a aniquilação.”
Muito tempo se passou desde então. Muitos seres mágicos sumiram do mundo. Alguns seres de fato ajudaram e ainda ajudam os humanos sempre que podem, embora outros tenham deixado as sementes do mal que receberam corromper-lhes e se tornaram servos inconscientes da árvore maligna, trabalhando no sentido de despertar as sementes dos humanos e assim evitar que façam o próximo feitiço do tempo. O feitiço do tempo desde aquela época passou a ser feito a cada lua, e ainda é feito até hoje, em muitos lugares do mundo, porém seu nome e forma mudaram com o tempo, em cada região do planeta. Em alguns lugares ele é entendido apenas como o apaziguamento dos deuses. Em outros, como uma dança da chuva. Ou ainda como um jeito para se evitar que o céu caia. Surgiram também milhões de táticas para se manter as sementes do mal dormindo nos corações. Alguns povos ficam de cabeça para baixo, como uma árvore, duas vezes por semana, e isso mantêm a semente quieta. Outros preparam poções especiais, ou contam histórias secretas. Alguns até realizam rituais de dor e sofrimento, mas o efeito é o mesmo: a semente fica quieta. Seus ancestrais, que os acompanham lado a lado mesmo quando não são mais vistos, junto de outros espíritos bondosos, garantem que todos estes esforços tenham a sua finalidade original mantida.
Entretanto, recentemente os espíritos falam sobre um povo distante, no além mar, que aparentemente deixou as sementes brotarem em seus corações e pararam de fazer o feitiço do tempo. Eles romperam os laços com seus ancestrais, e se tornaram tão maus quanto aquela árvore. Com todo aquele poder mágico e maligno acessado, estão se expandindo e destruindo o mundo, e um dia logo chegarão até aqui e nos destruirão também, seja pela morte, seja fazendo nossas próprias sementes brotarem. Teremos de ser fortes quando esse dia chegar, combatendo estes humanos que perderam seu caminho, mesmo que isso signifique a morte.

E a semente Mulungu, onde está? Hoje, ela está escondida no centro do mundo. Foi deixada lá por alguns espíritos amigos, depois da época do Povo Mulungu. Como descobriram que não é preciso estar próximo da árvore para o feitiço surtir efeito, os antigos pensaram que um lugar distante e seguro seja melhor. Lá embaixo, em cavernas sem vida e sem luz, pode ser que a árvore Mulungu, se um dia nascer, cresça feliz, e pode ser que nunca se lembre do que já foi e do mundo que viu, tanto tempo atrás. Porém, se lembrar, e se resolver recomeçar a guerra, seus movimentos serão sentidos em todo o planeta. Quando ela se levantar, causará terremotos, vulcões e furacões como nunca se viu, e temos esperança que eles destruam com todos nós de modo mais rápido e menos violento do que a árvore enfurecida faria. Talvez este dia chegue, e talvez só neste dia entenderemos, como diz a profecia, porque o Grande Espírito permitiu, afinal, que tal criatura existisse. Talvez então até o mundo esteja de tal modo transformado que agradeceremos a destruição. Não sabemos.
Mas, até lá, cuidemos de nossas sementes.
E enquanto pudermos, continuemos fazendo nosso feitiço do tempo.

3 comentários:

  1. Incrível! Já era bom quando no começo era apenas uma ficção. A metáfora é linda.
    Augusto

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  2. Maravilhoso ganhei meus 35 minutos de leitura,parabéns por compartilhar por dividir a hiatoria tão linda,apartir de
    hoje cuidarei para que minha semente de mulungu nunca germine gratidão eterna

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  3. Maravilhosa história gratidão eterna continue enviando coisas boa para todas as pessoas obrigada obrigada obrigada

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